Compartilhe
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
Linkedin
Share on whatsapp
Whatsapp
Share on email
Email
JOSÉ MARIA PIRES, Mestre de Todas as Artes

Caía a última tarde da minha adolescência

quando eu e Elvis entramos na sua casa.

Trazíamos um gravador de rolo 

e fomos direto para a cozinha. 

Era lá que você estava nos esperando.   


Notei que você não deu muita atenção ao Elvis, 

praticamente como se ele não existisse. 

Na verdade, ele tinha acabado de chegar do Vietnã, 

onde seus conterrâneos continuavam 

espetando o pé em bambus envenenados. 

Estava meio deprê. Por isso, como você bem se lembra, 

ele ficou o tempo todo de bico calado. 

Só movimentava o maxilar com a finalidade 

de mascar chicletes.   


Então liguei o gravador e você começou a contar 

a história da música popular brasileira, 

com tal veemência que, até hoje, para mim, 

Chiquinha Gonzaga, Tia Ciata, Noel, Lamartine, 

Pixinguinha, João de Barro, Ari, Vinicius, 

Assis Valente, Cartola, Adoniran e muitos mais 

são personagens de estirpe equivalente 

à dos maiores heróis homéricos. 

Pena que, como aconteceu com tantas 

outras coisas importantes em minha vida, 

a fita se perdeu. Não há mais como mostrar a ninguém 

o fervor quase religioso com que você se referia ao samba.

Ao samba, não. Ao Samba.  


Mas não esqueço: foi ali que essa nova divindade, 

pagã, mulata, bela, magnífica,

adentrou o terreiro do meu Olimpo particular.


Elvis olhava para o quintal pela janela dos fundos, 

quando você me apresentou o tamborim 

e a batida fundamental.

Depois, mostrou como se tocava de verdade. 

Naquele momento, vi que o Elvis tossiu. 

Engasgou-se com o chiclete, pensei. 

Engano. Ele passava mal. 

Tão mal que, quando você passou do tamborim 

para a caixinha de 

fósforos, ele abriu a janela para tomar um ar. 

Inútil. Todo o ar sambava. 

De repente, olhamos e ele não estava mais ali. 

Saiu de fininho. Sumiu.   


Aos 16 anos de idade, subi ao palco 

e declamei, de forma inacreditável, 

o Primeiro Canto de um poema épico que, 

para o bem da Literatura em geral,

jamais concluí. Você estava na platéia e, 

pelo que posso imaginar, deve ter pensado 


que eu fosse um lunático.

Tanto é verdade que, dias depois, 

convidou-me para ir à sua casa 

conhecer um amigo seu recém-chegado da Ásia. 

E lá estava ele, Walter Campos de Carvalho. 


Tinha acabado de matar seu professor de Lógica. 

À saúde disso, bebemos conhaque 

e ele me revelou, afinal, de onde vinha a Lua 

e tudo o mais.   


A partir desse dia, aconteceram diversos 

saraus semelhantes, em que bebemos 

com Drummond, com João Antônio, com Pessoa e seus heterônimos, 

com Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos.   


Meu Olimpo assim se expandia e,

uma noite, você me esperava acompanhado 

de um senhor de idade, completamente careca, 

de olhar arguto e fala abundante. 

O nome dele era David Carneiro. 

Falava sobre os ciclos econômicos do Paraná 

com autoridade de historiador consagrado. 

Era o assunto que faltava para o Não Agite 

sair no carnaval como Escola de Samba, 

com enredo próprio, pela primeira vez. 

Você era o diretor de bateria da Escola. 

E não é que me convidou 

para escrever o samba-enredo? 

E não é que eu escrevi?   


Em seguida, embarcamos em um ônibus 

e fomos para São Paulo ver a Bienal do Samba, 

no Teatro Paramount. Ficamos na Boca do Lixo,

hospedados no Hotel do Português, 

aquele em que, conforme você disse, 

o capim continuava crescendo 

por dentro dos colchões. 


Fomos ao Largo do Arouche comer massa 

com carne brasada no Restaurante O Gato Que Ri. 

E fomos também ao Bife do Moraes 

e ao Restaurante Brahma. 


Entre um e outro prato, você me apresentou o MASP 

e falou pelos cotovelos sobre os Impressionistas. 

Fiquei impressionado.   


Daí, a Elis entrou no palco e ganhou o Festival 

com “Lapinha”, de Baden e Paulo César Pinheiro.

Também vimos e aplaudimos o Billy Blanco, 

o Élton Medeiros, o Paulinho da Viola.   


Bebemos conhaque no bar em frente ao Teatro, 

Adoniran e uma patota na mesa ao lado.

E chegamos cedo ao bar em frente à Rodoviária, 

para beber mais um conhaque antes de embarcar.

Bebemos olhando o relógio, para não perder a hora.

Saímos do bar quinze minutos antes do embarque.

No entanto, quando fomos embarcar, 

o ônibus já havia partido. Como? E o relógio? 

Olhe lá! Você esbravejava. Acontece, mano, que esse relógio anda devagar,

informou o paulistano, e tivemos que esperar 

o ônibus seguinte.   


Eu já estava casado com a Cristina, sua sobrinha, 

quando instituímos a sinuca das quartas-feiras. 

Você, Ito, Cupertino e eu. Às vezes, apareciam outros. 

Seu irmão Aníbal, o Mano. O China, surdo-mor 

da Não Agite. O Hamilton Rocha, cruzadista. 

O Franco Giglio, muralista e pintor. O Edinho, barão europeu, herdeiro de um castelo suíço. 

Muitos, muitos mais. Começava com um conhaque

na “Favelinha”, nome que você deu ao apartamento 

em que morava na Carlos de Carvalho, quase esquina 

com Cabral. Prosseguia no restaurante da Sociedade

Duque de Caxias, na José Loureiro, onde o casal 

Calicetti cozinhava a melhor massa do mundo. 

E terminava, com dezenas de cervejas geladas, 

em volta das mesas do Snooker 21, 

trabalhoso pretexto que inventamos para falar 

sobre Orson Welles ou James Joyce, 

Fellini ou Mohamed Ali, Buñuel ou Ronald Golias,

Adhemir da Ghia ou Alain Resnais.   


Pois é, José, depois que você botou meu samba na rua 

e a Escola saiu cantando coisas da cidade,

descobri que Curitiba era um tema 

praticamente virgem em música popular. 

Enfim, eu tinha um tema para compor. 

Hoje me faz bem pensar que ajudei a tecer 

uma alma para essa cidade.

Pois, como nós sabemos, cidades sem música 

são como as mulheres sem amor. 

Não têm alma.  

 

Não sei se isso foi bom para Curitiba 

ou para a Música Popular. 

Nem quero saber. 

Mas quero que fique bem claro, 

mestre e amigo velho, 

louros e tomates, sejam quantos forem, 

quero dividir aqui, irmãmente, com você.  


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe
Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
Linkedin
Share on whatsapp
Whatsapp
Share on email
Email